Fui fazer faculdade nos Estados Unidos em 1995 e
depois voltei para mais dois anos de mestrado lá. Saí mais
otimista em relação ao Brasil do que quando cheguei. Até
aquela época, o contato com os EUA se resumia a férias, filmes
e encomendas trazidas de viagem. Sob esse prisma, o país
parecia uma Terra Prometida, onde tudo era bom e barato e as
pessoas, ricas e civilizadas. Se era assim na média, imaginei
que depararia com verdadeiros super-homens nas universidades
Ivy League para as quais me dirigia. Felizmente, eu me
decepcionei. Meus colegas americanos eram muito mais
ignorantes e superficiais do que eu imaginara. E, fora as
questões intelectuais, me chamou a atenção seu desajuste
emocional. Parecia que todo mundo estava ou brigado com os
pais, ou tomando antidepressivos ou indo a festas para beber
até cair. Muitas pessoas se encaixavam nas três categorias. Se
esse pessoal conseguiu construir a potência hegemônica do
planeta, pensei eu, nós também podemos. Yes, we can!
A volta ao Brasil depois de oito anos foi,
porém, surpreendente. Porque era (e segue sendo) claro que o
país se divide em dois grupos. Um é cosmopolita, aguerrido,
preparado e ambicioso. Gente que tem fome, que quer competir
com o que há de melhor no mundo. Ayrton Senna. O outro é
provinciano, malemolente, com baixa instrução, acomodado. Um
pessoal que está satisfeito com o que a vida lhe deu.
Macunaíma. Impossível quantificar construtos tão subjetivos,
mas diria sem medo de errar que o segundo grupo é muito mais
numeroso do que o primeiro.
Prova indireta disso é que os slogans dos
presidentes democraticamente eleitos nas últimas décadas -
portanto, afinados com a mentalidade coletiva - pertencem
quase todos ao segundo grupo. Sarney: “Tudo pelo social”.
Itamar: “Brasil, união de todos”. Lula I: “O melhor do Brasil
é o brasileiro”. Lula II: “Brasil, país de todos”. Dilma:
“País rico é país sem pobreza”. Todos esses olham para dentro
e para trás: o foco é sanar desigualdades, incluir, corrigir
os erros do passado, glorificar o que temos. Com exceção do
“Avança, Brasil” de FHC, ninguém faz menção ao mundo exterior
ou ao futuro, ninguém almeja tornar o Brasil aquilo que, até
por suas dimensões e riquezas naturais, ele deveria
naturalmente querer ser: uma potência mundial.
Compreender e explicar essa acomodação está além
deste espaço e deste colunista, mas as consequências desse
espírito são claras: ficamos muito abaixo do que poderíamos
ser. Tanto a literatura acadêmica (disponível em
twitter.com/gioschpe) quanto a minha experiência de vida têm
me mostrado que a gana individual - perseverança, resiliência,
ambição - é fator fundamental no sucesso de uma pessoa, aliada
à qualidade de sua formação. Não faltam inventividade e
persistência ao brasileiro: o problema é que os sonhos de
muitos compatriotas são bem mais acanhados do que poderiam
ser. Alguém já disse que o homem prudente é como o bom
arqueiro: mira sempre um pouco acima do alvo. O Brasil já mira
abaixo do que deveria, e portanto acaba alcançando ainda menos
do que ambiciona.
Em nenhum lugar esse rasgo da nossa psique está
mais aparente e imbricado com uma complexa relação de
causalidade do que em nosso sistema educacional. Se a nossa
pouca ambição já vem de família, certamente ela é muito
reforçada em nossas escolas. Em um perfil do professorado
brasileiro traçado pela Unesco e pelo MEC, 75% dos professores
declararam preferir a igualdade à liberdade. O objetivo da
nossa escola é homogeneizar, não desenvolver talentos. Um
levantamento de 2007 do Inep, o órgão de pesquisas do MEC,
identificou 2 553 alunos superdotados na educação brasileira.
Para identificar menos de 3 000 superdotados em uma rede de
mais de 50 milhões de alunos é preciso um esforço consciente
de cegueira. Eis aí uma diferença básica entre o que vivi em
escolas brasileiras e universidades americanas: aqui, o bacana
era o cara que não estudava, baladeiro, safo. O aluno aplicado
é “nerd”, otário. Lá, assim como em outros sistemas
educacionais de ponta, valorizado é o aluno que estuda muito e
tira ótimas notas. Nos EUA, os melhores alunos entram para
honors lists; na Alemanha, há sistemas educacionais diferentes
para aqueles com ambições acadêmicas mais altas; na China, os
alunos são ranqueados e precisam de boas notas para adentrar
as melhores escolas e, depois, as universidades. Aqui, o
histórico escolar da pessoa não importa. O jogo é zerado no
momento da entrada para a universidade, decidido por meio de
um único teste (vestibular ou Enem). No Brasil, há uma
estranha percepção de que recompensar os melhores e mais
aplicados seria romper o éthos republicano. Nossos professores
descreem de seus pupilos: só 7% deles acreditam que quase
todos os seus alunos chegarão à universidade, segundo
questionário da Prova Brasil 2009. Nosso desastre educacional
também desestimula ambições ao tirar do brasileiro o preparo
intelectual que é o pré-requisito para voos mais altos.
Pesquisa do Inaf mostra que 74% dos adultos brasileiros não
são plenamente alfabetizados. Com esse despreparo, sonhar
muito alto pode ser sinal de doença psiquiátrica.
A má educação causa a falta de ambição e é
também causada por ela. Nos países que deram grandes saltos, a
educação não foi percebida como um fim, mas como parte de um
projeto nacional. China do século XXI, Coreia da década de 70,
Estados Unidos dos anos 30, Japão do pós-guerra: nesses e em
outros casos, os países perseguiam um sonho de grandeza. A
educação não era o ponto de chegada, mas parte da ponte até o
futuro glorioso. Parte do nosso problema é que, ao não termos
um projeto nacional inspirador, a educação deixou de ser uma
questão dos brasileiros e se tornou propriedade dos
professores e funcionários. Alguns deles têm espírito público
e generosidade e fazem o melhor que podem para os seus alunos
e, consequentemente, o país. Mas a maioria acaba se acomodando
em um sistema que não incentiva o mérito, nem pune o demérito;
as únicas causas que defendem são as suas próprias.
Mas será que precisamos ser mais ambiciosos? O
Brasil já apareceu nas primeiras posições em levantamentos
internacionais de felicidade. Os céticos dirão que optamos por
menos ambição e desenvolvimento em troca de mais bem-estar,
sociabilidade e alegria. Acho essa uma falsa dicotomia. É
possível ser simultaneamente desenvolvido e alegre. Na última
pesquisa Gallup sobre felicidade mundial, realizada de 2005 a
2011, os dez primeiros colocados eram todos do Primeiro Mundo
e os dez últimos, subdesenvolvidos. Sou cético quanto à
qualidade de uma escolha tomada em situação de pobreza
intelectual como a que temos no Brasil. Longe de mim sugerir
que analfabetos não devam poder decidir sobre a vida deles.
Democracia e liberdade são valores supremos. Mas seria
demagógico supor que a qualidade das decisões que uma pessoa
toma não muda com melhorias radicais de instrução. Pesquisas
mostram que pessoas mais instruídas fumam menos e são mais
saudáveis. Finalmente, não creio que seja lógico ou ético
optar pelo nosso atual patamar de desenvolvimento, quando ele
significa que tantos milhões de pessoas estariam condenadas a
uma vida indigna, da mais absoluta privação. Eu não teria
problema de viver em um Brasil que, a exemplo da França, optou
por reduzir a semana laboral, trocando riqueza por lazer e
família - desde que o Brasil chegue ao patamar da França, em
que há riquezas acumuladas para bancar a “preguiça” e validar
a decisão de pegar leve. O Brasil ainda não chegou lá. Temos
um caminho longo. Convém mirar mais alto do que vimos
fazendo.
Fonte: Gustavo
Ioschpe - Revista Veja - 08/09/2012 - São Paulo, SP
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