quarta-feira, 20 de abril de 2011

"A educação é o grande movimento abolicionista contemporâneo"

O jornalista Gilberto Dimenstein é uma referência em jornalismo e educação. Em seus espaços na mídia (boletim diário na rádio CBN e coluna semanal no jornal Folha de S.Paulo), sempre foca o melhor da cidade de São Paulo, culturalmente falando. Na área social, sua ONG Aprendiz é reconhecida em todo o Brasil. Outro projeto de sucesso é o site Catraca Livre
POR ALEXANDRE DE MAIO
FOTOS: RAFAEL CUSATO


Você já declarou que a abolição foi incompleta e a luta pela educação é o mais urgente abolicionismo. O Brasil evoluiu nessa área?
Uma das falhas do processo abolicionista, dentre várias, é que não se pensou numa educação para todos, em educação pública na época. Tinha uma educação para ricos, uma parte complementar feita em Portugal. Outras nações da América Latina, como a Argentina, o Uruguai e o Chile, já tinham uma visão de educação. Os Estados Unidos tinham universidade há muito tempo. Não se tinha uma ideia de inclusão. Se esse conceito é novo hoje, imagine naquele tempo. A gente chega ao século 21 com um problema de educação sério. Você vê isso pelo número de meninos e meninas que não sabem escrever direito, nem entender um texto, que não conseguem ter conhecimentos básicos em matemática e ciência. E isso forma um circulo vicioso. Não tem boa educação, não vai ter um bom emprego, não vai conseguir dar uma boa educação para os filhos e não consegue pressionar mais pela educação. É daí que eu acho que a educação é o grande movimento abolicionista contemporâneo. É ela que garante a autonomia das pessoas, não existe forma mais grave de escravidão que a da ignorância. E quanto mais vulnerável é o grupo - e os negros têm uma vulnerabilidade histórica - mais essa questão se torna vital.


Por que a educação no Brasil só fica no discurso e pouco se avança?
Tem uma série de questões. Não fazia parte da elite a educação pública, que se virava nas escolas privadas. Na universidade, quem ia era a elite, que fazia sem pagar. Eu nunca vi isso! Rico vai à universidade sem pagar, quando poderia virar mais bolsa de estudo. Então não era preocupação, os ricos colocavam os filhos em escolas privadas, em universidades públicas ou então iam estudar fora. Simultaneamente, as lideranças dos trabalhadores, que deveriam ser as mais interessadas, não tocavam nesse assunto. Quantos líderes sindicais falam em qualidade de ensino? É mais fácil ver um líder empresarial falando. Aqui é um país corporativo, então, cada um cuida do seu pedaço. E os governos não colocaram como uma bandeira. O Brasil ficou muito tempo defendendo o crescimento econômico, ou outros grupos falavam de um socialismo para gerar igualdade, riquezas. A educação não foi um tópico que agarrou as elites intelectuais. Isso é uma coisa recente no país, faz uns 15 anos que se começou a ter essa visão. E para completar, quando você vê a preocupação das camadas mais pobres, a educação está em último lugar. Mesmo quando a coisa melhorou um pouco, acham que pelo menos temos merenda, um uniforme e o garoto não está na rua. Você criou um círculo vicioso. A população não demanda, os políticos não se mexem, por isso que eu digo que é um movimento complexo de abolicionismo, porque exige um trabalho tão profundo para que você consiga atrair os talentos para a escola pública.


O que você acha da progressão continuada, adotada em São Paulo?
Existe uma visão de que a educação tem que ser dura, que, se o garoto não aprende, tem que repetir o ano. Mas na essência está culpando a vítima. Não estou dizendo que não tem que repetir o ano, é mais complexo que isso. Os professores faltam em sala de aula, não são preparados, os laboratórios não funcionam, as bibliotecas são defasadas, boa parte dos alunos têm problemas básicos de saúde, muitos vêm de lares violentos, tem problemas psicossociais graves e a culpa é do aluno quando ele vai mal? Se um em cem vai mal, tudo bem, mas quando 30 ou 40% vão mal, não pode ser culpa do aluno. Ao mesmo tempo, há poucas avaliações periódicas e pouca opção de complementação escolar para quem vai mal. O que acontece em um lugar civilizado é avaliação periódica do aluno, você vai consertando as dificuldades que ele tem ao longo do período e tem muitas possibilidades de inclusão para o aluno prosperar. Vá a alguma escola rica e faça com que o garoto não tenha direito de ir ao dentista durante um ano, fique com cárie, ou que ele não troque os óculos, não trate o ouvido... Acha que ele vai ser um bom aluno? A escola não é para punir as pessoas, é para que elas se encantem pelo processo de aprendizagem. A educação é isso. Para a pessoa levar para o resto da vida. Se repete, o que acontece com o garoto? Ele vai para a rua e desenvolve uma baixa autoestima. Aí ele não aprende mesmo. A progressão continuada desse jeito não deve servir de modelo para o Brasil. O que deve acontecer é progressão continuada com recuperação continuada e um atendimento ao aluno na parte cultural e de saúde.



"O GRANDE PAPEL DA EDUCAÇÃO É GERAR SERES AUTÔNOMOS. NÃO É GERAR INDIVÍDUOS QUE SAIBAM MATEMÁTICA, QUÍMICA E FÍSICA. É GERAR PESSOAS CAPAZES DE SABER O QUE ELAS QUEREM FAZER DE SUA VIDA"



Causa angústia ver as lentas mudanças que acontecem com a educação no Brasil?
Causa, porque é um absurdo. O que me angustia mais é ver que quem deveria pressionar mais - que são os mais pobres e as lideranças sindicais - pressiona menos. Estamos no século 21 e a pessoa nem se quer sabe ler e escrever direito. Grande parte disso tem consequências gravíssimas, porque as pessoas podiam ter melhores empregos. Pessoas como o Tiririca são eleitas com a maior facilidade, pessoas absolutamente corruptas e desqualificadas são eleitas. O debate eleitoral é muito também baseado em imagens e marketing. O que me alegra é que tenho visto o tema educação na agenda, tenho vistos várias pessoas da elite se dedicar ao assunto.

Qual a importância da leitura nos tempos da internet?
Você não consegue ser, viver sem leitura. É com a leitura que você enxerga as opções da sua cidade. Ninguém é livre se só puder tomar sorvete de morango. se só conhecer pagode, rap ou música erudita. Liberdade é você poder optar entre muitas coisas que dizem respeito à sua vida. O grande papel da educação é gerar seres autônomos. Não é gerar indivíduos que saibam matemática, química e física. É gerar pessoas capazes de saber o que elas querem fazer de sua vida. A leitura hoje não é só livro. Antigamente você não tinha os livros, tinha poucas bibliotecas pelo planeta, o Shakespeare deve ter lido oito livros na sua vida, e não é por isso que não é o Shakespeare. Na verdade, quando a gente fala em leitura, é como você absorve os conhecimentos que estão aí, que vai ter que usar no seu dia a dia para montar um projeto de vida. Acredito que não adianta querer ler tudo. Nesse mundo da hiper informação o processo educativo é aquele que te ensina a ver o que é relevante para sua vida.

Você é a favor das cotas para negros na faculdade?
Se você quer que o negro progrida na sociedade, lhe dê melhor escola pública. O quilombo contemporâneo é a escola pública, para o bem e para o mal. Onde você pode ter a grande reação negra de autonomia de liberdade? É na escola pública! Em relação às cotas, esse é um assunto hipercomplexo. Eu tendo a ser favorável às cotas, mas para pessoas que venham de escolas públicas, em primeiro lugar. E, dentro da escola pública, tem que ter um tipo de diferenciação para o negro. Não adianta o negro receber uma cota, e se ele for de família de classe média alta? Ele tem mais direito que um garoto branco que vem de escola pública? Acho que não! Por outro lado, as cotas têm que ser um compromisso com o desempenho. Ganha uma cota, mas ele está estudando, indo bem na escola? Que tipo de avaliação se faz disso? Só a cota e a pessoa não estudar direito, não se comprometer, acho um paternalismo.

Você está indo para Harvard, nos Estados Unidos, um país com um presidente e outros tantos negros de destaque.
Harvard criou há três anos uma incubadora de projetos sociais, que envolve algumas faculdades, é feito pela Escola de Negócios que envolve a Escola de Administração, Educação, Direito e Saúde Pública. Você leva uma ideia e eles tratam da fazer a universidade desenvolvê-la. A ideia que vou levar é a de criar um mecanismo de gestão das cidades pela internet, usando como base o Catraca Livre (catracalivre.com.br) que o esforço de tornar a cidade um espaço acessível. Informando tudo que tem de graça e a preço popular. Cada vez mais está evoluindo pra área de outros serviços e simultaneamente agregando a isso os conceitos de Bairro Escola. É o uso da tecnologia da informação para favorecer e facilitar a relação com a cidade para que ela se torne um lugar que você possa conviver e aprender mais.


Porque existem tantos negros em destaque nos Estados Unidos?
Apesar de eles reclamarem bastante, há negros na Suprema Corte, muito mais negros na imprensa, muito mais negros como executivos. Dentro da visão americana, por mais que as pessoas possam criticar, tinha uma noção que a democracia tem que dar igualdade de oportunidades. As pessoas podem ser desiguais, mas elas têm que ter oportunidade iguais. E, quando se pensou a educação americana, já tinha entre seus fundadores a ideia de escola pública, tem vários documentos sobre a importância da educação. Um pouco do que se vê hoje, de ter tantos negros em posição de destaque, vem dessa visão. E por isso é mais difícil de imaginar um presidente negro no Brasil, porque temos menos negros na elite, apesar de ter tido uma evolução muito grande. Eu acho que uma das razões que estão por trás disso é que a educação não é uma grande prioridade. Cada vez mais é uma prioridade, mas não como é para os americanos. Nos Estados Unidos existem grandes discussões voltadas à educação pública, sempre teve a educação como ponto central para promover o negro, a ideia da educação pública como a questão central da agenda da igualdade.


Fonte: http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/153/artigo213108-2.asp

Nenhum comentário:

Postar um comentário